Um Tombamento que está arruinando uma história

Por desinteresses políticos não houve aplicação na conservação do imóvel, que fora tomado como patrimônio histórico do Estado

Hoje - Fotos: Lauro José

“Queremos o destombamento do espaço, a restituição pela degradação da estrutura, que não contou com a devida conservação prevista no processo de Tombamento e cada um segue com sua vida”
MARCIANO SCABELLO

Um casarão que carrega a história de Venda Nova do Imigrante simplesmente por existir, faz parte de um triste capítulo que está prestes a ser apagada da própria história da vida do município. Ele, que já foi escola, que já serviu de consultório odontológico prático, que já foi moradia de alguns dos principais pioneiros que desbravaram a região no passado, que já foi ponto de venda de secos e molhados, e que por isso contribuiu para a própria origem do nome do município por causa de seus imigrantes e suas vendinhas, hoje está em situação de completo abandono.

Casarão que está na propriedade dos Casagrande Scabello está em ruínas depois de um processo desastroso de Tombamento

Depois que a atual família proprietária da área decidiu embarcar num projeto de fomento da economia local a partir de suas raízes de agricultura familiar, e que tinha tudo para dar certo, o imóvel virou personagem de um lamentável enredo de decadência. O tal projeto acabou sendo interrompido e o que era uma vontade de recuperar parte da história da cidade, se transformou em lamento.

Quem passa pela ES-166, a rodovia Pedro Cola, sentido Castelo, talvez nem tenha noção de que quando vê ali, na região de Pindobas, a ruína de um casarão, esteja vendo, na verdade, os últimos resquícios de um dos primeiros casarões do que antes era uma vila de imigrantes e que mais tarde viria a se tornar uma das mais prósperas cidades das Montanhas Capixabas. Hoje, Venda Nova do Imigrante não deve se orgulhar de ser conhecida como a Capital Nacional do Agroturismo, deixando que parte de sua história da agricultura familiar caia no esquecimento por falta de cuidados e incentivo.

Atualmente, o que resta do imóvel está na propriedade dos Casagrande Scabello, mas nem pode ser chamado de “seu” pela família. A propriedade está na família desde 1924 depois de ser comprada pelos ancestrais dos antigos donos, Camilo Homem e Nicolau Cola, por 12 contos de réis. “Foram 7 contos à vista e o restante para ser pago em cinco anos sem juros”, relembra Luís Carlos Scabello, hoje dono da Fazenda Cachoeira Pindobas e agora o patriarca da família, refazendo os passos do avô, Emílio Scabello, numa visita da reportagem ao local.

Motivo da nossa visita aos Casagrande Scabello: ouvir da família como um projeto ousado que envolveu instituições sérias “parou no meio do caminho e agora prejudica a conservação de um dos primeiros casarões da história de fundação de Venda Nova do Imigrante, cujo período de construção data de entre os anos de 1740 e 1760”, reforça Marciano Casagrande Scabello, filho de Luís Carlos, e que segue o legado familiar de lutar pela retomada do comando do imóvel, retirado das mãos da família em 1998, depois de um processo desastrado de Tombamento Histórico. A irmã dele, Ivana Casagrande Scabello, proeminente figura ligada à educação e causas sociais, já encabeçou essa luta até falecer sem conseguir devolver à família “o que é da família e deveria ficar para a história das futuras gerações”.

Tudo começa entre 1997 e 1998, quando Venda Nova do Imigrante e Domingos Martins decidem participar de uma espécie de cruzada de mobilização para fomento de atrativos que ajudassem a alavancar a economia regional a partir do resgate histórico das tradições locais por meio da agricultura familiar e do agroturismo.

“Fizemos um curso por meio do Sebrae de duas mil horas durante dois anos, visitando propriedades, inclusive em Minas Gerais, para vivenciarmos experiências de outros produtores que estavam vivendo da exploração do agroturismo. Em específico aqui, na nossa propriedade, a ideia inicial era transformar o casarão em um museu com objetos das famílias de imigrantes que ajudaram a fundar Venda Nova do Imigrante, foi daí que minha vó (Yolanda Brambilla Scabello) concordou com o processo de Tombamento Histórico do imóvel junto à Secretaria de Estado da Cultura (Secult), que se deu início a partir de 1998”, descreve Marciano.

“O que vovó Yolanda não sabia, entretanto, é que parte da história da família estaria comprometida dali em diante”.

A família, que vivia no casarão bicentenário, precisou deixar o lugar para que o processo de Tombamento fosse em frente. Uma nova casa, então, precisou ser construída para abrigar os Casagrande Scabello. “Mas o sonho de vovó, de fazer do casarão um marco para a história do município, se tornou um pesadelo. Não que a nossa família também não fosse ser beneficiada com a iniciativa, claro que seria, uma vez que poderíamos explorar o entorno do museu com negócios ligados à nossa tradição de agricultura familiar, como nosso tradicional ‘pão torrado dos tropeiros’, açúcar mascavo, fubá, embutidos, enfim os produtos que já são produzidos aqui na propriedade, só que isso não aconteceu!”, lamenta Marciano.

“Entregamos o casarão em condições de uso para o Estado e hoje ele está desmoronando porque não houve conservação do agora Patrimônio Histórico”, frustra-se a família.

Dentro do casarão de arquitetura ítalo-portuguesa ainda existem objetos que remontam o século passado, como uma enorme mesa de madeira, uma cadeira odontológica que servia ao dentista prático da época, cerâmica antiga, tachos, restos de mobília, motores e ferramentas. Mas quem assiste mesmo a toda essa exposição histórica escondida são os inúmeros morcegos que agora habitam o interior do imóvel. “Queremos o destombamento do espaço, a restituição pela degradação da estrutura, que não contou com a devida conservação prevista no processo de Tombamento e cada um segue com sua vida”, anuncia Marciano Scabello.

O patriarca, senhor Luiz Carlos Scabello e a esposa Maria Rosa Casagrande Scabello; o filho Marciano Casagrande Scabello, com a esposa Silvana Vinco Fioresi Scabelo e os filhos: Bruno, Lorenzo e Valentina

Patrimônio cultural abandonado e retido para intervenções voluntárias

Patrimônio Cultural é definido como um conjunto de bens móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação é de interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico. São sujeitos a Tombamentos conjuntos arquitetônicos, como casarios, monumentos naturais, sítios e paisagens que importe conservar e proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou criados pelo homem no passado.

O Tombamento do Casarão da Fazenda Cachoeira Pindobas foi registrado assim: A palavra tombo, significando registro, começou a ser empregada pelo Arquivo Nacional Português, fundado por D. Fernando, em 1375, e originalmente instalado em uma das torres da muralha que protegia a cidade de Lisboa. Com o passar do tempo, o local passou a ser chamado de Torre do Tombo. Ali eram guardados os livros de registros especiais ou livros do tombo. No Brasil, como uma deferência, o Decreto-Lei que prevê Tombamentos adotou tais expressões para que todo o bem material passível de acautelamento, por meio do ato administrativo do Tombamento, seja inscrito no Livro do Tombo correspondente.

Responsabilidade e fiscalização

Marciano Scabello

Qualquer pessoa física ou jurídica poderá solicitar o tombamento de qualquer bem ao Iphan, bastando, para tanto, encaminhar correspondência à Superintendência do Iphan nos Estados, à Presidência do Iphan, ou ao Ministério da Cultura. Para ser tombado, o bem passa por um processo administrativo que analisa sua importância em âmbito nacional e, posteriormente, o bem é inscrito em um ou mais Livros do Tombo. Os bens tombados estão sujeitos à fiscalização realizada pelo Instituto para verificar suas condições de conservação, e qualquer intervenção nesses bens deve ser previamente autorizada. “Aqui está abandonado e a gente não pode agir para impedir a deterioração total do imóvel, porque não temos autorização, e tampouco apoio ou auxílio de qualquer forma”, reclama Marciano em nome da família.

Sob a tutela do Iphan, os bens tombados se subdividem em bens móveis e imóveis, entre os quais estão conjuntos urbanos, edificações, coleções e acervos, equipamentos urbanos e de infraestrutura, paisagens, ruínas, jardins e parques históricos, terreiros e sítios arqueológicos. O objetivo do Tombamento de um bem cultural é impedir sua destruição ou mutilação, mantendo-o preservado para as gerações futuras. “Aqui aconteceu o contrário: o Tombamento está destruindo parte da nossa história e da história do município, porque quem passa aqui e vê o estado do casarão só enxerga desleixo e como se a culpa fosse nossa pelo abandono”, entristece-se.

Como se não bastasse: a família ainda corre o risco de no futuro precisar conviver com um lixão de transbordo do outro lado da rodovia, a poucos metros do casarão. “O município adquiriu uma área e o assunto para instalação de um lixão até já chegou a ser discutido na Câmara de Vereadores”, denuncia Marciano.

 

Governo do Estado responde situação de abandono

Pronunciando-se em nome da família, Marciano Casagrande Scabello admite que o ofício não foi respondido, como menciona a Secult, mas não considera que esse tenha sido o motivo para que a conservação do casarão fosse levada adiante.

Segundo ele, na verdade houve abandono do projeto. “Por falta de recurso ou desinteresse do Estado, não houve aplicação na conservação do imóvel, que embora particular, fora tomado como patrimônio histórico do Estado”, afirma.

Scabello relata que quando a obra de restauração foi iniciada, “no meio do caminho a obra foi paralisada, até ser abandonada de vez e o imóvel ficou parcialmente descoberto e a estrutura sofreu com a ação do tempo (sol e chuva), de modo que as paredes originais do casarão que foram mantidas como estavam, e aquelas que foram recuperadas viessem ao chão por conta das intempéries”. Mas isso é capítulo para uma outra história. Uma outra triste história.

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